O contexto


Se calhar, recordarmos o passado com amor (tenha sido bom ou mau)
é uma estratégia da VIDA
para nos fazer contar histórias aos nossos descendentes
e eles ficarem mais contextualizados. 
É que o contexto é muito útil à sobrevivência.

Cor e luz

Chagall

Somos o que fazemos?


Somos o que fazemos? Hoje em dia os psicólogos gostam muito de uma coisa que é terapia comportamental. Deve ser porque somos o que fazemos. Porque sentimos o que somos quando fazemos. Já nem somos o que temos, porque todos temos de tudo, mais ou menos. Nem somos aquilo em que acreditamos, porque já não acreditamos em nada. Tal como também não somos o que sabemos, porque isso não traz felicidade a ninguém. E sejamos o que sejamos, temos é que ser felizes.

É resumir a vida ao ao presente. O que fazemos em cada momento e o que sentimos quando o fazemos. Somos o que fazemos. A memória deixa de ter importância. A experiência acumulada, as frustrações, também. Sonhos?
Mas talvez seja porque nos queremos equilibrados no dia-a-dia e porque para isso temos que esquecer tudo e concentrar-nos no caminho. "Keep calm and carry on" frase que ressuscitou dos tempos da 2ª Guerra e voltou a estar na moda.

Somos o que fazemos e temos que fazer coisas com nomes. Passear, dormir, comer, conversar. Trabalhar. Que nome darei ao que estou a fazer? Escrever, pensar, reflectir, criticar, exprimir-me, acalmar-me, conhecer-me. Que vou fazer a seguir? Alguma coisa, algo com nome, algo que exista. Nem que seja "pensar". Mas haja nome, faça-se alguma coisa. "Nada" é que não.




O Carnaval


O Carnaval!

Lembramo-nos dele!

Era a agitação da vida, o riso, a folia, a gargalhada rubra e pletórica. passava por nós com os lábios vermelhos, juvenil e hilariante, malcriado com a Irreverência e implacável com a Justiça, acotovelando-nos, alfinetando-nos, esmurrando-nos as ventas com dois ovos, chicoteando-nos os nervos com a ironia de um epigrama, fazendo de nós, enfim, um boneco com quem se brinca, entre justo e cruel, entre alegre a verdadeiro, mas sempre com graça, com bom humor, com "verve", com vida!

E tudo se desculpava... Se era Carnaval!

Lembramo-nos dele!

Quando éramos pequenos, aqui há quinze ou dezasseis anos, como ele nos parecia divertido, sanguíneo, esplendoroso! Agora ouvia-se uma graça que nos irritava, logo era um dito picante que nos fazia cócegas, mais logo uma alusão de espírito, esfuziante e luminosa: enfim, com narizes de Cirano e espadalhões de D. Quixote, com batinas de tartufos ou com a barriga de Sancho Pança, era uma coisa com espírito, com alma, com vida - que raio! - que merecia o apoio de um sorriso e o aplauso de uma gargalhada!

Em comparação com o de outro tempo, como é triste e enjoativo o Carnaval de agora!

Nem já sabemos rir…

Isto, hoje, é a Alegria com clorose e albuminúria, é o humorismo com pedra nos rins, é o Riso sofrendo de anemia e a exigir pílulas Pink e conforativos ferruginosos. 

O nosso humor está a pedir casa de saúde e a nossa verve exige banhos do mar e sanatórios de montanha!

Ainda se vêem, sim, pierrots e chuches, mas tudo se move aí pelas ruas como por um dever de ofício, uma mascarada é um serviço que se tem a fazer e já se vai a um baile com  mesmo ankoo e o mesmo fastio com que se vai para a repartição.

Neste momento passam máscaras, lá em baixo, mas tristes, graves, sorumbáticas, com a correcção de directores-gerais e o aplomb de conselheiros de estado, marchando a passo lento, como Cristo para o Calvário, sem o estouvamento de uma graça, sem o delicioso estremeção de uma asneira, tão triste e tão graves, as máscaras! Dir-se-ia que vão para algum enterro, tal é a frieza circunspecta do seu semblante e o aperto que lhe causam as botas de verniz!

São tão tristes, as máscaras!

Agora passa um casamento… São duas crianças, os noivos. Ele de casquinha muito justa, bota de polimento, gravata branca, um chapéu alto em miniatura, e ela de seda azul, com uma flor de laranjeira na cabeça! E vão tão solenes, tão compenetrados no seu papel - coitadinhos dos pobres anjos! - que parece que vão efectivamente dirigir-se ali à Sé para se unirem para sempre, depois de abençoado o enlace por um cura muito feio, dizendo muito latim e cheirando muito a rapé! E aquela coroa de laranjeira, naquela cabecita mimosa de seis anos, ficava tão bem, e era tão simbolicamente justa, que pensámos no Carnaval dos outros 363 dias, quando tantas, a sério, levam aquela clássica flor com muito menos direitodo que, num dia de Entrudo, a levar a brincar, naquela criancita rosada e muito fresca!

E lá passa agora um homem de chifre, e de rabo muito comprido… Ih! pai do céu, como ele vai feio assim, e como ele é caricato! Escolheu este dia do Entrudo para manifestar as virtudes domésticas e os altos feitos familiares. Durante todo o ano, é o que sabem; é, porém, neste dia de Carnaval, chuvoso e triste, nebuloso o céu, merencória toda a gente, que ele, com mais umas gotas de álcool no papo e um pouco mais de genebra no estômago, se apresenta tal qual é, com grandes chifres agudos - o pulha! -, com o comprido rabo a sair-lhe do manto - o desavergonhado!
Mais adiante, vai um escritor que se mascarou de mulher, e que só assim é verdadeiro, e mais além vemos um político que se veste de palhaço nestes três dias para fazer supor que o é menos nos outros dias do ano!

Como é carnavalesca a vida, e como é triste o Carnaval!

São tristes as máscaras! Dá vontade de lhes esmurrar as ventas, os estafermos!
E nesta coisa sem valor, nesta maçada insuportável, sem a heroicidade de uma crítica justa ou o arrojo de uma alusão humorística, que é incapaz de fazer abrir a boca num riso esfuziante ou de nos apressar a digestão do pato com arroz, gastam-se rios de dinheiro, meses de paciência, oceanos de mortificações!

E para quê? Para andarem nessa sensaboria, embirrativas, umas tristíssimas máscaras, clamando, imperativas e categóricas:
- Então, não riem? Achem-nos graça, com a breca! Riam de nós, com mil demónios! Batam-nos palmas, ainda que para isso façam algum sacrifício! 
E ninguém se ri. Ninguém acha graça. Ninguém bate palmas. A todos acomete o mesmo nojo, concordando todos que é uma sensaboria insuportável. 

De vez em quando passa no ar um cheiro a sulfídrico… É a decomposição. 
Sim; de ano para ano, o Carnaval some-se, anémico e clorótico, e cedo há-de vir o tempo em que ele deixará de existir. A religião acabou quando de uma coisa grave e séria passou a ser um pretexto de namoros e uma maneira agradável de passar o tempo. O Carnaval também acabará, visto que de uma coisa divertida e burlesca, que de um parêntese alegre na comédia triste da vida, passou a ser o mesmo pretexto de namoros, e um meio estúpido para os namorados atirarem flores e confeitos, os néscios!

Pela nossa parte, desejamos que essa morte venha breve, muito breve e que não mais se repita, as cenas destes três dias enjoativos, em que a alegria redunde em tristeza, à força de ser fictícia, em que se ri em contra-regra, em que se tem graça com ponjó ao pé, em que se palheceia e se fazem trejeitos para que confundamos os gestos de meia dúzia de fantoches articulados com a deliciosa sátira do Riso e a divina explosão da Força!

Divertimo-nos mais nos outros 363 dias, vendo essas máscaras que para aí se movem, em diferentes travestis, mas todas visando ao mesmo fim: viver, vencer, à custa da vida e da felicidade dos outros. 
Há o político que agita a sua palavra de honra como um pierrot agita os seus guizos de Carnaval. 
Há o ditador que se mascara de liberal, e o tirano que põe um travesti de democrata.
Há o espírito criativo que despeja uma bolsa numa manifestação exterior e que é incapaz de acudir à família necessitada que lhe mora ao pé da porta. 
Há o homem generoso, grande patriota e grande católico, que nos fala constantemente em religião, deixando morrer à fome a pobre mãe velhinha. 
Há os Júlios de Vilhena falando na sagrada liberdade e os Pimentéis Pintos consorciando-se com a velha Democracia … 

Tudo isso é um Carnaval burlesco, infinitamente mais alegre e infinitamente mais proveitoso que esse Carnaval que para aí se ostenta, na impotência da velhice, chéché de 80 anos a precisar de cantáridas, pálido e sensaborão, sem o chicotear nervoso de um dito, nem a algazarra penetrante de uma graça…

E ao ver os gestos graves, medidos, calmos ou a indignação colérica e sombria dos políticos de ofício, ao vê-los no resto do ano levantar os braços, agitar os membros pedindo justiça, falando em liberdade, clamando por vingança, é então que nos faz vontade de dizer, como vós, os amigos do Carnaval:
- Bem te conheço, ó máscara, bem te conheço!

Raúl Proença
A vanguarda. Lisboa (22 Fev.1909), p.1