A Aposta


Freguesia da Ponta do Pargo, Calheta

Vocês sabem o que é a felicidade? Anda muita gente à procura dela, mas nem toda a gente a encontra. No entanto conhecia-se no Porto do Moniz um casal - a Tia Narcisa e o Tio Norteiro - que chegaram à muita idade sem terem tido uma zanga, por pequena que fosse. Era o casal mais feliz e amigo de toda a ilha. De toda a ilha? Ora, de todo o mundo!

Felizes eram, mas também pobres, muito pobres. E foi preciso tomar uma decisão importante para resolver o problema da pobreza. Foi preciso mesmo vender a vaquinha que eles tinham alimentado durante muito tempo. E lá foi o Tio Norteiro para os lados da Ponta do Pargo procurar comprador.

Ali chegado, um pargueiro, armado em engraçado, virou-se para o Tio Norteiro e perguntou-lhe:
- Quer trocar essa vaca por uma cabra?
E o Tio Norteiro:
- Ora, então não hei-de trocar?

E fez-se a troca, mais adiante apareceu um pastor que lhe trocou a cabra por uma ovelha. E não tardou que aceitasse trocar a ovelha por um galo. Depois, apertando-lhe a fome, vendeu um galo e comprou um pão. Regressou então a casa. Estava já o Tio Norteiro perto de casa e encontrou um vizinho que lhe perguntou:
- Então, ti Norteiro, fez bom negócio?
- Deixa-me lá, não trago um pataco furado!
E contou o que se passara. Logo o vizinho comentou:
- Ai, a ti Narcisa vai dar-lhe uma malha!
- Uma malha?! - Admirou-se o ti Norteiro.
- Com tanta asneira que fez, aposto o dinheiro da vaca em como a Tia Narcisa se vai zangar a valer!
- Bem, não sei. Como insistes, aceito a aposta, anda daí.

E à chegada a casa, o vizinho assistiu à cena:
- Então, sempre vendeste a vaca? -  perguntou a Ti Narcisa.
- Troquei-a por uma cabra.
- Foi o melhor que fizeste. Dá leite e não dá tanto trabalho.
- Mas troquei a cabra por uma ovelha.
- Ainda melhor, pois dá leite e lã!
- Olha troquei-a depois por um galo.
- Pronto, já temos com que acordar para a missa de domingo!
- Mulher, mas deu-me a fome, vendi-o e comprei um pão para comer.
- Fizeste muito bem! Não ias ficar com fome e com um galo na mão!
E o vizinho, admiradíssimo com a bondade da Ti Narcisa, de bom grado pagou a promessa e andou a contar a história a toda a gente!

em "Contos Populares das Ilhas da Madeira e do Porto Santo", José Viale Moutinho, editora Nova Delphi

Rabo de Peixe


Hoje fui a rabo de peixe filmar rabo-peixenses e foi lá que descobri as pessoas mais simpáticas e dedicadas do mundo inteiro. Se virem jogos de futebol no campo de Rabo de Peixe, reparem nos apanha-bolas. Têm coletes que dizem "Wembley Stadium", porque foi o Burrica que os trouxe de lá quando viveu em Inglaterra, durante quatro anos. Ele não os comprou, mas ofereceu-os todos :)

Os cartazes da CDU

Hoje vi aqui na Horta (no largo do Infante) o cartaz de um candidato da CDU, com a parte de baixo ao sol quase poente e a parte de cima à sombra de uma árvore, tal como são as sombras das árvores que deixam passar o sol entre as folhas. Essa imagem aqueceu-me o espírito. Mas ia de carro e logo pensei noutras coisas.


Agora à noite, recapitulando as coisas boas do dia, voltou e imagem e percebi o porquê: no Redondo, no largo, à sombra dos plátanos havia os cartazes da CDU. Não tenho nenhum amor especial pelo comunismo, mas tenho um amor muito grande aos plátanos do Redondo. E ao largo do Redondo, que é um verdadeiro largo. O largo do Infante é estreitinho, ao contrário da visão do homem que lhe deu o nome.

Corrida de Sardinhas

Prevista no princípio do séc. XX para o ano 2000 :)
Foi enviada por um amigo

A "cataplasma"

Novembro, 17 (1838)
A maneira de comer a bordo de um navio fruteiro de S. Miguel em dias de mau tempo, desconserta tristemente quem estiver habituado ao uso de talheres de prata.

A expressão habitual designativa do almoço, do jantar, do chá e e da ceia é "ir buscar a comida", perífrase que à maravilha define o cerimonial em uso.

O compartimento em que tal obrigação se desempenha é suficientemente amplo para quatro pessoas, e tem, à guisa de mesa, uma cómoda quadrada, provida de asas. Devido ao tempo borrascoso que tem feito, torna-se necessário, antes de pôr a mesa, pregar-lhe a "cataplasma" (como diz o capitão), isto é, torcer em longo rolo qualquer peça de vestuário desgarrada que por ali se encontre à mão, um casaco impermeável, ou capote de lã, p. exemplo; depois, dispô-lo em ziguezague sobre a mesa, cobrindo o rolo com um pedaço de vela, a modo de toalha, e formando a sotavento uma grande protuberância para proteger a loiça no caso de balanço forte. Finalmente, a fim de manter a "cataplasma" no devido lugar, é esta fixa por um pedaço de fio de corda enlaçado por sobre a mesa, e atado aos puxadores das gavetas.

O despenseiro, designação pomposa dada a um rapaz sebento, enfarruscado e jovial, prepara o almoço, apertando entre as anfractuosidades da "cataplasma" as chávenas, os pires e as tijelas, para evitar que caiam e se depedacem; enche de biscoito o cabaz do pão e coloca-o firme no meio da mesa, escorando-o com um bule e com pão duro; em seguida, entala nos sítios convenientes o manteigueiro de manteiga de Cork, um bocado de carne salgada, um açucareiro de açúcar mascavado, enfeitado com torrões da mesma substância branca; arremessa para a mesa um molho de colheres de estanho e outro de garfos e facas novos e embotados e depois retira-se para preparar o chá.

Suponhamos que o chá está pronto e que o bule ficou estivado com o bico para barlavento; tanto que o encarvoado moço de novo aparece com uma caçarola de ovos, enorme vaga invade o navio; este entra em balanço forte para sotavento e com o balanço tentamos segurar as xícaras aos pires, segundo-se porém indescritível caos entre todos os utensílios indispensáveis ao almoço: o bule extravasa o chá por sobre o manteigueiro; entorna-se o leite; o pão fica ensopado; e porque deixaram a escotilha aberta, desabam sobre as nossas cabeças vários baldes de água dos grossos mares entrados a bordo. O capitão pragueja, o criado põe de lado os ovos, em busca do balde e da rodilha; os passageiros levantam os pés para se livrarem da água salgada que já encharcou os mochos, as botas e as extremidades dos capotes e continua a enlamear e a gorgolhar no sobrado do camarote; o homem do leme resmunga, rabujento, - "Sim, senhor" - à ordem ainda mais azeda do capitão - "Aguenta-o firme".

Ao jantar os preparativos são mais ou menos os mesmos do almoço.

O capitão não era nenhum gastrónomo.

A carne salgada é trazida numa celha de madeira até à porta da sala de jantar, onde a cortam em duas partes iguais.

Metade volta para cima pela escotilha na mesma celha para consumo da tripulação; a outra metade punha-se em fundo tacho para a mesa da câmara. Vinha então o infalível prato de bordo, de couves com gordura, cenouras esbranquiçadas e batatas com casca. Postas todas as iguarias na mesa, seguia-se a tarefa de averiguar o paradeiro do capitão. Chegado este, quando a comida começava já a arrefecer, verificava-se que não estavam na mesa nem os garfos, nem as facas e que também faltava a mostarda. E porque o saca-rolhas ficara esquecido na gaveta, tornava-se necessário desmanchar a "cataplasma", levantar a mesa e voltar a pô-la.

Arrancada a rolha, tiravam-se os copos do armário, ainda com os restos do vinho da véspera, a secar. "Cozinheiro, cozinheiro!" e os copos eram entregues pela escotilha com a recomendação: "não se lavam agora com água doce", aviso este que o forte gosto a água salgada na borda do vidro logo indicava haver sido fielmente cumprido. A ceia era como o almoço repetido à luz das velas.

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Joseph e Henry Bullar em "Um inverno nos Açores e um verão no vale das furnas" traduzido do inglês por João Hickling Anglin - Edição do Instituto Cultural de Ponta Delgada - Ilha de S. Miguel - Açores, 1986

Inquisição

Ainda existe este sentimento, entre nós. Resquícios do anti-semitismo?

"A suspeita de cristã-novice recaía, com frequência, sobre quantos alcançavam sucesso nos seus empreendimentos, privilegiando-se, socialmente, aqueles que mantinham estilos de vida ociosos e perdulários contrários à mentalidade capitalista emergente."

in "Indiferentes à Diferença - Os Judeus nos Açores nos sécs. XIX e XX" de Fátima Sequeira Dias

Tudo bem gravado dentro do meu sentido


Adeus Rua Sá Carneiro
Adeus Rua de Mourão
Adeus Largo adeus Igreja
Do Sagrado Coração

I
Adeus Rua do Rossio
Adeus Sociedade
Adeus Museu de Antiguidades
Tudo feito com muito brio
Adeus Fonte do Rossio
Adeus Travessa do Carneiro
Ainda digo adeus primeiro
Ao antigo lavadouro
Despeço-me com muito amor
Adeus Rua Sá Carneiro

II
Digo adeus à taberna
Do Francisco Carrilho
Seguindo o mesmo trilho
Adeus Café Lanterna
Falando de coisas modernas
Tal como elas são
Tenho a preocupação
Não me esqueça alguma coisa
Adeus café da Lousa
Adeus Rua de Mourão

III
Adeus padaria
Adeus Rua da Calçadinha
Esta ideia é minha
Adeus lojas e mercearias
Quando chegar esse dia
Que por certo ninguém deseja
Aqui estar para que se veja
Eu lanço este retrato
Adeus café Regato
Adeus Largo adeus Igreja

IV
Adeus Rua das Palhotas
A da Estrela fica defronte
Adeus Rua da Fonte
Ao largo tem uma horta
Para nós pouco importa
Nesta mesma ocasião
Aceitamos esta lição
Tal como se diz
Adeus Igreja Matriz
E a do Sagrado Coração

V
O que aqui não foi citado
Por certo não está esquecido
Tenho tudo bem gravado
Dentro do meu sentido

João Chilrito Farias (poeta popular), Luz, 1997
em "Breviário Alentejano" de Francisco Martins Ramos
Editora Caleidoscópio

pico gelado

Na Madalena do Pico há uma gelataria de gelados daqueles que são feitos lá.Quando se vai daqui ao Pico, tendo tempo, come-se um gelado da gelataria.Há umas semanas fui ao Pico. Tive tempo e comi um. Estava bem bom. Quando ia apanhar a lancha para voltar para o Faial passei outra vez em frente à gelataria a tempo de ouvir esta conversa assim, nítida, quase de propósito para eu a ouvir: um senhor chegou, pôs os cotovelos no balcão e disse para as três senhoras que estavam lá dentro:
- Com que então não gostaram dos gelados da Santini??

E elas, pareciam ensaiadinhas, abanaram a cabeça com muita convicção e puseram os olhos em baixo:

- Não!!!

 Segui caminho, sem ouvir mais nada, para não estragar esta história perfeita.