o cinema do cotovelo oeste


Da minha janela tenho vista para a rua toda, desde o cotovelo leste ao cotovelo oeste. A minha janela fica virada a sul, por isso o sol entra-me em casa durante todo o dia. Sinto-me feliz com isso. O homem europeu também andava sempre do lado do sol.
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Passava para lá de manhãzinha e depois para cá à tardinha. Aos fins-de-semana passava muitas vezes. Parecia gastar os dois dias de descanso entre o cotovelo leste e o cotovelo oeste. Eu não me admirava com isso. No lado oeste da rua, depois do cotovelo, existe o CINEMA. O homem europeu gosta de cinema. Durante a semana trabalha e não pode ver as fitas, mas ao fim-de-semana vê-as todas. Durante o intervalo entre sessões vai sempre a casa, que fica no cotovelo leste. Por isso passa tantas vezes debaixo da minha janela, deixando no ar um fumo seco de cigarro espanhol.
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É claro que já troquei com ele algumas palavras. Nem sempre é um tipo simpático, mas sempre atento e nunca arrogante. Já houve quem lhe chamasse ignóbil mas nunca o vi ultrapassar os limites da decência.
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Costumava andar sozinho. Nos finais de tarde dos sábados fazia-se acompanhar no seu passeio por uma rapariga séria, morena e de grandes olhos tristes. Iam à sessão da noite. A rapariga levava o casaco de malha dobrado e pendurado no braço quando iam para o cinema e apenas pousado por cima dos ombros no regresso. Não raras vezes vinham a conversar. Ela não parecia mais animada do que antes, mas podia adivinhar-se que as conversas que mantinham eram sobre o filme.
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Permaneço horas a fio à janela do meu quarto, porque sou muito preguiçoso e gosto de ver os meus semelhantes.
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O homem indiano era assaz diferente. Passava sempre de manhã e sempre do lado da sombra. Era alto e magro e vestia uma túnica cor de açafrão que ondulava ao andar e deixava no ar uma mistura de incenso e cravinho. Só há filmes indianos de manhã, aos dias de semana. O homem indiano via-os todos, alguns repetidas vezes. Quando para lá ia acenava-me e perguntava-me sempre num português perfeito: "O senhor engenheiro passou bem?" E eu respondia sempre amavelmente. Muitas pessoas da rua o apelidavam de arruaceiro. Nunca o considerei tal. Tinha até gosto em ser seu vizinho.
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A sua loja era no cotovelo leste, perfumada e colorida, onde atrás do balcão 1000 gavetas guardavam produtos culinários. Três lindas raparigas, suas filhas, sorriam e atendiam. Nunca lá comprei nada senão pimenta, único condimento ainda tolerado pelo meu delicado estômago, num pouco de queijo fresco de perfume branco.
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O homem indiano ficava no cinema a manhã toda e voltava cantando as músicas do filme. Eu sorria para mim mesmo. E perguntava-lhe: "Acabou bem?" E ele geralmente acenava alegremente que sim, mas vezes havia em que dizia apenas "Ai que pena, senhor engenheiro... é a vida!"
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Só que não era a vida, eram os filmes. Mas não fazia mal. A vida do homem europeu e do homem indiano eram os filmes. E a minha era o filme da minha rua.

Canção de como salvei a minha tia Sara de um resfriado nas extremidades

estava a papar
e uma mensagem
caiu do ar
dum personagem
do outro mundo
na minha sopa
caiu no fundo
sujando a roupa
da minha tia
a que por sorte
já nada via
e até à morte
ela nunca soube
que de ensopado
o seu lindo robe
ficou manchado
*
aquela carta
era para mim
dizia "Marta"
com letra assim
para o diferente
com inclinação
não frequente
lá dentro ainda
era mais fina
era tão linda
tão à menina
que eu gostei logo
li-a a correr
e era um jogo
a não perder
*
era um concurso
de outro planeta
tinha um percurso
e uma meta
a inscrição
vinha no fim
com um cupão
só para mim
fui preenchê-lo
para a cozinha
colei um selo
numa cartinha
e enviei
com os meus dados
depois esperei
os resultados
*
um mês depois
já estava farta
abri a carta
aos safanões
tinha vencido
todas as provas
e recebido
uma meias novas
quis ir contar
à minha tia
mas por azar
já não ouvia
apertei-lhe a mão
que estava gelada
mas no coração
não tinha nada
*
ainda vivia
em meu parecer
mas com a mão fria
por resolver
fui ver das meias
as do concurso
e enfiei-lhas
até ao pulso
*
na sua cara
cara de tia
de tia Sara
algo sorria.

Comunicado ao mundo


As pessoas de agora
que dizem que o antes é que era bom
não sabem concerteza que
aquilo que somos hoje
é resultado do que fomos ontem.

Publique-se.

Dúvida



Quando as pessoas dizem "as pessoas isto" ou "as pessoas aquilo", é de nós que estão a falar?